O açude é uma permanência deliciosa entre a montante e a jusante do sertanejo. Faz parte de sua vida, até porque é um adjutório na sua própria sobrevivência. Açude também é infância, é alegria de menino, folguedo, disputa de cangapés, pescaria. É contemplação e é memória. O açude está nas memórias do ilustre missivista doutor Paulo Bezerra, senhor de terras que chegam até às águas do Gargalheiras, o mais bonito açude do Seridó. É o mote de sua carta desta semana que me chega logo depois de sua volta de uma viagem ao Canadá de onde trouxe queixas de qualquer coisa que anda incomodando sua espinha. Vejamos o que ele diz:
“Amigo velho:
Andei pisando no terreiro dos outros e de lá voltei derrengado de um quarto. Nem sequer arreneguei. Estou aqui de perna pro ar, que nem Ascenço Ferreira, tempo suficiente para, remexendo nas gavetas da memória, lhe fazer as linhas desta carta.
Ainda não havia nem ar de dia e já o xexéu (Cacicus cela) cantava nas galhas do juazeiro (Ziziphus joazeiro). Outros passarinhos soltavam o seu gorjeio compondo a sinfonia da natureza. Começava a tirada do leite das vacas recolhidas, elas urrando pelos bezerros e os bezerros berrando por elas. Cada tirador de leite tinha as vacas da sua cuia, chamadas pelo nome para a ordenha manual, sempre na mesma ordem. Bote Bargadinha, bote Flor do Campo, bote Espanhola, bote Gaúcha e assim por diante. Ao ouvir o nome, mãe e cria chouteavam para a porteira, cada qual para o seu lado. A cria, abanando o rabo de contentamento, mamava até apojar, os cachos de escuma caindo pelos cantos da boca. O leite cru era tomado da última vaca, sempre uma de cor escura como Maravilha, pois diziam ser mais saboroso o leite de vaca daquela cor, tomado ao natural ou com açúcar ou com uma pitada de sal.
Para uns, depois do leite vinha o banho de açude, tibungando de cima da pedra, de cabeça, em pé ou num salto mortal de frente ou de costas, a se apoiar depois, para descanso, em cavalete de mulungu (Erythrina falcata), às vezes em pé sobre ele ou sentado. Uma demonstração de fôlego era o cangapé que consistia no mergulho e nas cambalhotas, emergindo só uma perna estirada, ferindo com um golpe a superfície da água. Quem mais cangapé desse, maior fôlego tinha. Outra teima era tirar lama para ver quem ia mais fundo antes, porém, tomando pé de mãos para cima para saber da fundura do lugar; para tirar água do ouvido a meizinha esta ali mesmo: era só encher a boca d’água e, quando quente, cuspi-la na palma da mão e emborcá-la no ouvido mouco. Desvirando a cabeça a água saia. Outro pega era mergulhar para ver quem ia sair mais distante. O banho de açude, por assim dizer, não era só folguedo, mas também asseio corporal, pois na beira d’água havia um pedaço para esfregar o corpo com a ajuda de bucha (Luffa cylindrica) de lavar prato. De enxugar o corpo, o vento e o sol se encarregavam.
No decorrer do banho as mulheres não saíam nas janelas nem aguavam hortas nem lavavam roupa, em razão de que todos estavam nus. Ali se aprendia a nadar com os mais velhos, nadadores de açude com o busto fora d’água, porque jogavam o cavalete longe forçando o nado do principiante. As lavadeiras batiam a roupa ensaboada na pedra, espremiam, depois botavam ao quaradouro, enxaguavam em água limpa e punham a seca, mas não voltavam ao açude as águas servidas por esbarrarem em pequeno barreiro. De outra parte, se elas estivessem lavando ou aguando o banho não acontecia.
À boca da noite, findo os trabalhos, outro banho para tirar a poeira do chão, o pelo do mato e o enfado. Havia, no entanto, a restrição de que tomando banho na água quente poderia apanhar um “defluço”. Quando as águas baixavam, os banhos estavam proibidos, pois era dali que se tirava a água de gasto que abastecia a casa e como não havia chuvisco - o banho de chuvisco com água encanada -, voltava-se ao banho de cuia na cacimba de detrás do açude. A água de beber, pura como a água do céu e gostosa e cristalina, vinha de tanque aberto na rocha derna o começo do mundo, feito o tanque do Boi, o do Marcelino, o das Genus e o tranque d’Água Azul, este distante dali umas poucas de léguas, lá na Pendanga. Havia de ser coada e posta uma noite de repouso, para ser bebida no dia seguinte - a chamada água dormida.
Naquele dia o almoço já estava pronto e os animais selados para levar os estudantes em Acari onde pegariam o caminhão de João Cândido de Medeiros, de Carnaúba dos Dantas, com destino a Recife. Lá do banho de açude um gritou para o povo da cozinha que insistia no horário: “Espere aí! Vou dar o último pulo!”. Encheram a barriga, despediram-se e se foram, pois as férias estavam findando - as do meio do ano de 1940. Em outubro, um portador a pé chegou nas Pinturas com a notícia da morte de Das Chagas - um deles -, o que nos levou para a casa da rua, minha mãe na ilusão do filho doente, mas que já estava sepultado, longe dali. Na chegada uma amiga, religiosa feito ela, das mesmas irmandades, abraçou-a a lhe fazer afago: “Maria Jesus, se conforme, que seu filho já está no Céu”. Durante os 24 anos que ela sobreviveu ao trágico acontecimento, num sofrer que dava pena, nunca lhe saiu do peito, ecoando e doendo e ferindo, aquelas palavras derradeiras: “Vou dar o último pulo”, como se fosse uma sentença de morte, a premunição do que ia acontecer. Daquilo tudo restou na minha mãe uma tristeza alucinante e uma saudade infinita que, apesar da passagem do tempo, nunca morreu.
Trago, cabra velho, essas lembranças comigo, umas tristes outras alegres, porque eu vivo, também, dessas lembranças.
Natal, 17 de agosto de 2010,
Paulo Bezerra”
O açude de Oswaldo E por falar em açude, tem este texto primoroso de Oswaldo Lamartine. Está no livro Sertões do Seridó: “Espia-se a água se derramando líquida e horizontal a se perder de vista. As represas esgueiram-se em margens contorcidas e embasteadas, onde touceiras de capim de planta ou o mandante de hastes arroxeadas debruçam-se na lodosa lama. O verde das vazantes emoldura o açude no cinzento dos chãos. Do silêncio dos descampados vem o marulhar das marolas que morrem nos rasos. Curimatãs em cardumes comem e vadeam nas águas beirinhas nas horas frias do quebrar da barra ou ao morrer do dia. Nuvens de marrecas caem dos céus. Pato verdadeiro, putrião e paturi grasnam em coral com a coaxar dos sapos que abraçados se multiplicam em infindáveis desovas geométricas. Gritos de socó martelam espaçadamente os silêncios. O mergulhão risca em rasante vôo o espelho líquido das águas. Garças em branco-noivo fazem alvuras na lama. É o arremedar, naqueles mundos, do começo do mundo...